Nas últimas aulas, fiz uma breve introdução sobre o Iluminismo e resumi
as teorias de alguns pensadores importantes cujos nomes estão associados ao
pensamento das Luzes. Comentei que o termo diz respeito a um movimento
intelectual que se difundiu pela Europa no século XVIII, mas
cujas ideias já vinham sendo moldadas no século anterior. Também comentei que a
“luz” é uma metáfora para a razão, que teria o poder de revelar ao homem
a Verdade. Ou seja, de acordo com o entendimento dos pensadores iluministas, o
mundo se daria a conhecer apenas por meio do pensamento racional.
Vimos, ainda, que as idéias iluministas eram produto de uma sociedade
em transformação e, ao mesmo tempo, agiam sobre ela no sentido de
aprofundar e consolidar as mudanças que vinham se processando. Essas
mudanças estavam relacionadas com o desenvolvimento do capitalismo e a ascensão
econômica da burguesia, que começava a almejar maior participação política.
Nesse sentido, o Iluminismo vinha ao encontro dos anseios, valores e projetos
burgueses. Não é à toa, que o pensamento iluminista fazia severas críticas
às instituições do Antigo Regime.
Para dar continuidade aos nossos estudos sobre o Iluminismo e aprofundar
nosso entendimento acerca desse movimento intelectual que deixou marcas
indeléveis na nossa maneira de perceber e interpretar o mundo, trabalharemos
agora com um texto e uma imagem produzidos na Europa entre os séculos XVII e
XVIII.
Texto: Fragmento de Discurso sobre a origem da desigualdade, de Jean Jacques Rousseau
O
primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e
encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador
da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores
não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando
os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar
esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a
terra de ninguém!". (...)
Da
cultura das terras resulta necessariamente a sua partilha, e, da propriedade,
uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um
o seu, é preciso que cada um possa ter alguma coisa; de resto, como os homens
começassem a levar suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham alguns
bens que perder, não houve nenhum que não receasse para si a represália dos
males que pudesse causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é
impossível conceber a idéia da propriedade surgindo fora da mão de obra; porque
não se vê o que, para se apropriar das coisas que não fez, possa o homem
acrescentar-lhe além do seu trabalho. Só o trabalho, dando direito ao
cultivador sobre o produto da terra que lavrou, lho dá por conseguinte sobre o
fundo, pelo menos até à colheita, e assim todos os anos; e isso, constituindo
uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. (...)
Nesse
estado, as coisas poderiam ter ficado iguais, se os talentos fossem iguais, e
se, por exemplo, o emprego do ferro e o consumo dos alimentos tivessem feito
sempre uma balança exata: mas, a proporção que ninguém mantinha foi logo
rompida: o mais forte fazia mais tarefa; o mais destro tirava melhor partido da
sua; o mais engenhoso encontrava meios de abreviar o trabalho; o lavrador tinha
mais necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo; e,
trabalhando igualmente, um ganhava muito, enquanto outro mal podia viver. É
assim que a desigualdade natural se desenvolve insensivelmente com a de
combinação, e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das
circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, e
começam a influir na mesma proporção sobre a sorte dos particulares.
Tendo
as coisas chegado a esse ponto, é fácil imaginar o resto. (...)
Antes de terem sido inventados os sinais representativos da
riqueza, estas só podiam consistir em terras e em animais, os únicos bens reais
que os homens poderiam possuir. Ora, quando as herdades foram crescendo em
número e em extensão, a ponto de cobrirem o solo inteiro e se tocarem todas,
umas não puderam mais crescer senão à custa de outras, e os extranumerários,
que a fraqueza ou a indolência tinham impedido de adquiri-las por sua vez,
tornados pobres sem ter perdido nada, porque, tudo mudando em torno deles, só
eles não tinham mudado, foram obrigados a receber ou a roubar a subsistência
das mãos dos ricos; e, daí, começaram a nascer, segundo os diversos caracteres
de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e as rapinas. Os
ricos, por seu turno, mal conheceram o prazer de dominar, desdenharam em breve
todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos escravos para submeter novos,
não pensaram senão em subjugar e escravizar os vizinhos, como lobos esfaimados
que, tendo experimentado a carne humana, desdenham qualquer outra nutrição e
não querem mais devorar senão homens. Foi assim que os mais poderosos ou os
mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de
direito ao bem de outrem, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a
igualdade rompida foi seguida da mais horrível desordem; e assim que as
usurpações dos ricos, os assaltos dos pobres, as paixões desenfreadas de todos,
sufocando a piedade natural e a voz ainda mais fraca da justiça, tornaram os
homens avarentos, ambiciosos e maus. (...). A sociedade nascente foi praça do
mais horrível estado de guerra (...).
Não
é possível que os homens não tenham feito, enfim, reflexões sobre uma situação
tão miserável e sobre as calamidades que os afligiam. Os ricos, principalmente,
logo deviam sentir como lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujas
despesas só eles faziam, e na qual o risco de vida era comum, assim como o dos
bens particulares. (...) Destituído de razões válidas para se justificar e de forças
suficientes para se defender; esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele mesmo por tropas de bandidos;
só contra todos, e não podendo, por causa das
rivalidades mútuas, unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela
esperança comum da pilhagem, o rico, premido
pela necessidade, concebeu enfim, o projeto mais refletido que jamais entrara
no espírito humano: o de empregar em seu favor as
próprias forças daqueles que o atacavam, de tornar seus defensores os seus adversários, de lhes inspirar
outras máximas e de lhes dar outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto contrário lhe era o
direito natural.
Tendo isso em vista, (...) inventou facilmente razões especiosas
para os conduzir ao seu objetivo. "Unamo-nos, - lhes disse, - para livrar
da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do
que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos
sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo
modo reparem os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o
fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra
nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis
sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repila os
inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia."
(...)
Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que
deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a
liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade,
de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de
alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à
servidão e à miséria.
Rousseau, Jean Jacques. Discurso
sobre a origem da desigualdade.
Disponível em http://www.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000144.pdf.
Acessado em 12 de setembro de 2009.
a. Como Rousseau explica o surgimento da propriedade privada?
b. Para Rousseau, os homens são iguais por natureza? Justifique.c. De acordo com Rousseau, qual é a relação que existe entre propriedade, desigualdade e o governo?
d. A partir do trecho abaixo, extraído do Segundo tratado sobre o governo civil, aponte a diferença das concepções de propriedade presentes nas obras de John Locke e Rousseau.
Locke, John. Dois tratados sobre o governo. Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 409.
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