TEXTO 1
CONTRASSENSO E IGNORÂNCIA
Acredito que as medidas do prefeito João Doria em relação à arte de rua como a criação de "grafitódromos" e a pintura sobre grafites da av. 23 de Maio não foram tomadas por má-fé, mas por ignorância em relação a uma cultura de rua que é fortíssima na cidade de São Paulo e reconhecida no mundo todo.
O prefeito, como quase todo filho da aristocracia, cresceu em uma bolha, vendo a rua como mero espaço de deslocamento, sempre de carro, entre sua casa e os lugares de seu interesse, e não como espaço de convivência, descoberta e sociabilidade.
Esse lapso de formação típico dos filhos da elite paulistana fez com que ele desenvolvesse conceitos distorcidos que podem ser inofensivos para uma pessoa comum, mas desastrosos quando esse cidadão chega à prefeitura da cidade.
É consenso entre os urbanistas que uma cidade segura é aquela que tem as ruas ocupadas por pessoas, fortalecendo o senso de comunidade. Recomendo ao prefeito a leitura de "Morte e vida de grandes cidades", de Jane Jacobs, para que entenda que cercadinhos como o "grafitódromo" e a Virada Cultural em Interlagos estimulam a "shoppingcenterização" da cidade e fazem com que as ruas fiquem cada vez mais vazias e inseguras, matando aos poucos a cidade.
O prefeito precisa entender que a essência do grafite e da pichação está na ilegalidade. Para que um desenho no muro possa ser chamado de grafite, o artista tem que escolher o muro que quiser e fazer o desenho que bem entender, correndo o risco de ser pego pela policia e submetido ao rigor da lei. Faz parte do jogo. Quando o grafite é aceito pela sociedade, transforma-se em um outro tipo de arte, não menos valioso, mas diferente.
A palavra "grafitódromo" é por si um contrassenso, pois quando um artista recebe autorização e cachê para pintar, ele passa a ter um cliente e não pode fazer o que lhe der na telha. O grafite em sua essência não pode ser regulado pelo poder público.
Outro erro do prefeito está na confusão entre o combate ao que ele considera grafite e a pichação. Quando o grafite foi aceito e domesticado pela sociedade, a pichação herdou seu espaço contestador. Pichadores buscam sempre o enfrentamento com o poder público. Declarar guerra à a pichação de forma midiática pode trazer votos, mas é tudo o que os pichadores mais querem e terá um efeito devastador para a cidade, pois a reação será fortíssima.
A pichação é um crime e deve ser combatida, mas é também uma forma de comunicação sofisticada, criada para que seus autores se comuniquem com seus pares e, ao mesmo tempo, agridam a sociedade que os oprime. Vejo nas pichações a mais perfeita tradução estética de São Paulo, um reflexo de seu caos arquitetônico, dos emaranhados de fios, do egoísmo e da vaidade que imperam na cidade.
Ao pichar, jovens periféricos que são invisíveis à sociedade provocam o ódio e passam a ser notados. É melhor ser odiado do que ignorado, e quando o prefeito da cidade te odeia, ele reconhece que você existe, e não há prazer maior do que esse para os pichadores.
Em Nova York, no final dos anos 1970, quando o grafite surgiu como um braço do movimento hip hop, os índices de criminalidade eram altíssimos e a policia tinha assuntos mais sérios a resolver. Só após a gestão Rudolph Giuliani (1994-2001), quando a criminalidade caiu, a policia pôde combater de forma efetiva crimes menores como o grafite.
São Paulo está hoje no mesmo estágio de Nova York nos anos 1980 e só vai ser capaz de enfrentar a pichação de verdade quando resolver uma série de problemas gravíssimos que devem ser prioritários. Pichação se resolve com escola de qualidade e não com tinta cinza e bravatas na televisão.
JOÃO WAINER, jornalista e cineasta, foi diretor da "TV Folha" e repórter especial do jornal. Dirigiu o documentário "Pixo" (2010)
TEXTO 2
A ARTE E O CIDADÃO
Quem anda a pé por São Paulo já se deparou inúmeras vezes com placas instaladas em frente a residências e comércios com o texto: "senhor pichador, o dinheiro economizado com a limpeza das paredes é doado a uma instituição de caridade conforme comprovante anexado".
O recado dado educadamente representa a ação de um cidadão comum que, cansado de ter prejuízos financeiros em pintar suas fachadas frequentemente, vê-se obrigado a pagar uma taxa extraoficial –mesmo que beneficente– para fazer-se respeitar.
Em cidades como Tóquio e Paris, a legislação é dura com a pichação, considerada crime. Assim como nessas metrópoles, São Paulo também precisa ter uma política cultural e de zeladoria para o grafite, que valorize essa expressão artística e que a diferencie da pichação.
Apenas com uma política cultural toda a população vai poder realmente reconhecer e valorizar o grafite. Toda a população.
Um grafiteiro que teve um mural apagado na avenida 23 de Maio publicou em redes sociais uma mensagem que vem repercutindo bastante: "É uma arte efêmera! Boa enquanto durou e que se renova!".
Renovar a cidade é um desejo da gestão Doria, que está colocando em prática o programa Cidade Linda, no qual, além de ações de limpeza, organização e infraestrutura, vem apagando pichações e apagou alguns grafites, como o mural do artista citado acima.
Convido a todos a refletir que gerir uma cidade requer ouvidos atentos a opiniões diversas e que nem sempre estão representadas em nossas redes sociais.
Embora cada vez mais a gente acredite que a parte representada por nossos amigos corresponde ao todo, nesse primeiro mês como secretário da Cultura, a realidade que estou conhecendo em visitas aos mais diversos bairros é mais complexa e contraditória do que podemos supor a partir das visões particulares de nossas rodas mais próximas.
Para que possamos juntos construir um diálogo propositivo, alguns esclarecimentos são necessários.
O "status" de arte atribuído ao grafite é algo recente. Por isso, ele é tópico de discussões e questionamentos em diversas cidades. Boa parte dos grafites nova-iorquinos dos anos 1970 só pode ser vista hoje por meio do suporte da fotografia e do cinema, não mais ao vivo.
Um bom exemplo disso será a mostra de Jean-Michel Basquiat (1960-1988), um dos ícones do movimento da arte de rua dos anos 1970. Em 2018, o Masp exibirá gravuras e desenhos do artista. Ou seja, quando a obra de um grafiteiro consagrado nos muros das cidades "viaja" a outros países, isso acontece em outros suportes (telas, papéis, fotografia, cinema) que não as paredes da cidade.
A pedido do prefeito, ainda durante a transição na Secretaria da Cultura, já previmos a criação do programa Museu de Arte na Rua. Ele será vivo e ganhará novas alas periodicamente, em diferentes regiões da cidade.
Dessa forma, vamos manter São Paulo como a capital mundial do grafite.
Isso sempre considerando o respeito aos cidadãos, a cidade, aos patrimônios publico e privado, responsabilidades inequívocas da gestão municipal.
Os detalhes serão anunciados em breve, mas já podemos adiantar que um edital público será lançado e uma comissão de curadores será responsável pela seleção.
Além disso, criaremos a Central do Grafite, um local para os artistas se encontrarem, ensinarem a jovens interessados, com espaço de convivência e experimentação.
Estar em um estado democrático é desafiador para todos os agentes da sociedade. O diálogo respeitoso, as manifestações, as visões diferentes sempre farão parte do dia a dia de uma cidade como São Paulo.
ANDRÉ STURM, cineasta, é secretário municipal de Cultura de São Paulo
Textos publicados no caderno Opinião, Tendências/ debates, do jornal Folha de São Paulo, em 28/01/2017
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