quarta-feira, 3 de maio de 2017

Primeiro Ano Noturno - A Ilíada e a aristocracia grega




Ninguém sabe ao certo se Homero existiu. E se existiu, também não é certo que tenha criado os dois poemas épicos que consagraram seu nome: Ilíada e Odisséia. Para muitos estudiosos, se Homero existiu de fato, provavelmente seu papel foi reunir e dar forma a diversas histórias muito antigas que por séculos eram cantadas pelos aedos em banquetes, onde se reuniam os guerreiros para rememorar seus grandes feitos e os atos de bravura de seus antepassados.  Afinal, era assim que a aristocracia grega legitimava seu domínio sobre o resto da população: ela descendia dos heróis do passado e era herdeira de suas virtudes, como força, coragem e espírito arguto. Compunha, por conseguinte, o grupo seleto dos aristoi - ou seja, "os melhores".
Seja como for, é difícil não se comover com a grandeza dos versos de Homero. Eles têm um poder impressionante de sacudir nossos sentidos e arrebatar a alma. Para ilustrar o que digo, leiam os versos abaixo, que contam como o nobre Heitor perece sob a espada de Aquiles. 

 A morte de Heitor

Assim dizendo, desembainhou a espada afiada,
que pendia sob o flanco, espada enorme e potente;
reunindo as suas forças, lançou-se como a águia de voo sublime,
que através das nuvens escuras se lança em direção à planície
para arrebatar um terno cordeiro ou tímida lebre - 
assim arremeteu Heitor, brandindo a espada afiada.

E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente 
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu - 
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.

Ora todo o corpo de Heitor estava revestido pelas brônzeas armas,
belas, que ele despira a Pátroclo depois de o matar.
mas aparecia, no sítio onde a clavícula se separa do pescoço
e dos ombros, a garganta, onde rapidíssimo é o fim da vida.
Foi aí que com a lança arremeteu furioso o divino Aquiles,
e aponta trespassou completamente o pescoço macio.
Mas a lança de freixo, pesada de bronze, não cortou a traqueia,
para que Heitor ainda pudesse proferir palavras em resposta.
Tombou na poeira. E sobre ele exultou o divino Aquiles:
"Heitor, porventura pensaste quando despojavas Pátroclo
que estarias a salvo e não pensaste em mim, que estava longe.
Tolo! Longe dele um auxiliador muito mais forte
nas côncavas naus ficara para trás: eu próprio, eu que agora
te deslassei os joelhos. Os cães e as aves de rapina irão
dilacerar-te vergonhosamente, mas a Pátroclo sepultarão os Aqueus."

Já quase sem forças lhe respondeu Heitor do elmo faiscante:
"Suplico-te pela tua alma, pelos teus joelhos e pelos teus pais,
que me não deixes ser devorados pelos cães nas naus dos Aqueus;
mas recebe o que for preciso de bronze e de ouro,
dons que te darão meu pai e minha excelsa mãe.
Mas restitui o meu cadáver a minha casa, para que do fogo
Troianos e mulheres dos Troianos me deem, morto, a porção."
Fitando-o com sobrolho carregado lhe disse o veloz Aquiles:
"Não me supliques, ó cão, pelos meus joelhos ou meus pais.
Quem me dera que a força e o ânimo me sobreviessem
para te cortar a carne e comê-la crua, por aquilo que fizeste.
Pois homem não há que da tua cabeça afastará os cães,
nem que eles trouxessem e pesassem dez vezes ou vinte vezes
o resgate e me prometessem ainda mais do que isso!
Nem que o teu próprio peso em ouro me pagasse
Príamo Dardânio. Nem assim a tua excelsa mãe
te deporá num leito para chorar o filho que ela deu à luz,
mas cães e aves de rapina te devorarão todo completamente."

 Moribundo lhe disse então Heitor do elmo faiscante:
"Na verdade te conheço bem e direi o que será; mas convencer-te
era algo que não estava para ser. O coração no teu peito é de ferro.
Mas reflete bem agora, para que eu para ti me não torne
maldição dos deuses, no dia em que Páris e Febo Apolo
te matarão, valente embora sejas, às Portas Esqueias."
Assim dizendo, cobriu-o o termo da morte.
E a alma voou-lhe do corpo para o Hades, lamentando
o seu destino, deixando para trás a virilidade e a juventude. 
E para ele, já morto, assim disse o divino Aquiles:
"Morre.O destino eu aceitarei, quando Zeus quiser
que se cumpra e os outros deuses imortais."

Ilíada, canto XXII, v. 306-366 (trad. Frederico Lourenço)
extraído de http://epicentro.blogs.sapo.pt/arquivo/752506.html


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