FH2: Entre a imaginação e a realidade
A arte dos sonhos
Certa
vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem, “Histórias
Vividas”, uma imponente gravura. Representava ela uma jibóia que engolia uma
fera (....) Dizia o livro: “As jiboias engolem, sem mastigar, a presa inteira.
Em seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão”.
Refleti
muito então sobre as aventuras da selva, e fiz, com lápis de cor, o meu
primeiro desenho. Meu desenho número 1 era assim:
Mostrei
minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se meu desenho lhes fazia medo.
Responderam-me:
“Por que é que um chapéu faria medo?”.
Meu
desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um
elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes
pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações. Meu desenho
número 2 era assim:
As
pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de jibóias abertas
ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia, à história, ao cálculo, à
gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma esplêndida carreira de
pintor. Eu fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu
desenho número 2. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é
cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando.
(Saint-Exupéry,
Antoine de – O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1979, p. 9 - 10).
Desenhos
podem ser como fotografias: cópias das imagens captadas pelo olhar. Mas também
podem expressar sentimentos, fantasias e valores. Quando o narrador da história
acima fez seu “desenho número 1”, ele tinha na cabeça uma porção de ideias
sobre as florestas tropicais e seus habitantes. Estava excitado com a
descoberta de que ali existia um réptil enorme, que engolia sua presa inteira e
numa abocanhada só. Fantasiava sobre como o diâmetro da jiboia se agigantaria
se ela escolhesse um elefante para o almoço. Sua imaginação corria solta e seu
desenho era expressão disso.
Os desenhos podem ter ainda um
significado mágico. Entre as populações nativas da Austrália, a arte é uma
espécie de “porta” para sobrenatural. Assim, quando desenha sobre cascas de
árvores ou no chão, com tintas extraídas de frutos, minerais e sementes, o
artista acredita estar fazendo contato com os espíritos da natureza e dos
ancestrais. É como se ele entrasse em transe e sonhasse acordado com histórias
enviadas pelos espíritos, contendo ensinamentos e conselhos sobre como devemos
nos comportar para vivermos em harmonia com as outras pessoas e a natureza. É
por isso que cada ponto, linha ou figura da arte nativa australiana tem um
significado especial. Articulados, eles formam um código secreto que só os
iniciados nas artes mágicas conseguem decifrar.
A arte
praticada pelos aborígines australianos é considerada uma das mais antigas do
mundo. Arqueólogos encontraram figuras com cerca de 40 mil anos, gravadas em
paredes rochosas da Austrália, usando temas e técnicas bem parecidos com os
empregados no presente pelas populações locais.
Testemunho subterrâneo
Pinturas
como estas foram encontradas não só na Austrália, mas em quase todo o mundo. É provável que seus autores também
pintassem sobre a areia, cascas de árvores e até sobre o próprio corpo, mas
esses “suportes” não duram tanto quanto as rochas e, literalmente, viraram pó
com os efeitos do tempo.
Chamamos
de arte rupestre o
conjunto de pinturas, inscrições e desenhos feitos nas rochas e no interior de
cavernas. As mais antigas datam de algo perto de 40 mil anos, mas algumas
inscrições simples, como uma linha em ziguezague descoberta numa caverna da
Índia, sugerem que desde 200 ou 300 mil anos atrás os seres humanos já haviam
desenvolvido algum tipo de pensamento simbólico. Além dessas pinturas, existem
estatuetas igualmente antigas, com formas de mulheres e animais cuidadosamente
entalhadas em pedra, osso e marfim, e também alguns instrumentos musicais como
flautas.
O
primeiro conjunto importante de pinturas rupestres foi encontrado em 1879, numa
gruta em Altamira, na Espanha. A princípio, ninguém acreditou que elas fossem
obra de nossos antepassados. Afinal, não era verdade que os seres humanos
progrediam sempre? Sendo assim, como pessoas tão primitivas teriam a capacidade
de realizar obras tão belas e com tão alto nível técnico? Ora, – pensou-se –
aquelas figuras só poderiam ter sido feitas por algum espertalhão do presente.
Contudo, as pesquisas acabaram provando que as coisas não funcionavam
exatamente daquele modo. As pinturas de Altamira não só eram mesmo milenares,
como havia outras ainda mais antigas, como as pinturas de Chauvet (França), que
não lhes deviam nada em matéria beleza nem de qualidade!
Depois de
Altamira, as pesquisas arqueológicas na Europa tomaram impulso. Cresceu o
interesse pelo estudo de nossos antepassados que, afinal, já não poderiam ser
vistos como brutamontes estúpidos. Dinheiro e esforços foram investidos na
busca de novos sítios arqueológicos. Não por acaso, a maioria das pinturas
rupestres mais antigas que conhecemos hoje estão no fundo de grutas e cavernas europeias.
Apesar de separadas por centenas de
quilômetros, estas as pinturas apresentam inúmeras semelhanças. Por exemplo, geralmente
retratam com naturalismo grandes herbívoros ou animais ferozes e perigosos. Há
também desenhos de seres fantásticos, meio gente e meio bicho, e figuras
geométricas como círculos, bastões e triângulos. Porém, há pouquíssimas figuras
de pessoas e quando estas aparecem, são apenas esboçadas, sem nenhum realismo.
Não há nenhum registro de paisagens nem de vida cotidiana. Também são poucos os
desenhos de animais pequenos como coelhos e raposas.
Já as
pinturas rupestres mais recentes, com menos de 13 mil anos, são encontradas em
várias partes do mundo e mostram maior diversidade de temas: além das imagens
já citadas, aparecem também pessoas paradas ou em movimento (por exemplo,
caçando, fazendo sexo e talvez dançando), animais e plantas de várias espécies,
e sinais que lembram corpos celestes, como estrelas.
Para tentar “decifrar” essas pinturas,
antropólogos e arqueólogos estudam cada imagem e sinal. Para isso, contam com a
ajuda de dezenas de especialistas, inclusive pintores e escultores que conhecem
bem as técnicas artísticas. Buscam identificar e comparar figuras recorrentes*
em determinados lugares e situações. Também costumam compará-las com os
trabalhos de populações atuais que preservam costumes tradicionais, como
acontece com os aborígines australianos, e perceber semelhanças e diferenças
entre eles. Além disso, frequentemente os desenhistas primitivos faziam suas
pinturas sobrepostas* a outras mais antigas, e por isso, comparando as que
estão em primeiro plano (mais recentes), com as de fundo (mais antigas), os
pesquisadores conseguem acompanhar e estudar as transformações pelas quais passaram
os registros rupestres ao longo do tempo.
Estudos
como estes permitem encontrar algumas pistas sobre a vida e a maneira de pensar
dos homens primitivos. Contudo, esse é um trabalho difícil e cheio de
armadilhas. Por exemplo, descobriu-se recentemente que nem todos os animais
representados nas cenas de caçada eram realmente comidos, pois não foram
encontrados vestígios de seus ossos nos lugares onde existiram acampamentos
humanos. Além disso, o fato de haver semelhanças entre a arte rupestre do
passado e do presente não significa que as ideias, sentimentos e valores
expressos nas duas sejam iguais. Portanto, as pinturas rupestres sozinhas não
nos dão nenhuma certeza. É, pois, preciso “cruzar” as pistas oferecidas por
elas com outras, como restos de fogueiras, pontas de lanças e fósseis, para que
possamos montar um vago quadro de como viviam os seres humanos há milhares de
anos.
As razões da arte
Mas ainda
resta uma questão: Por que os homens primitivos pintavam?
A
dificuldade para responder esta questão está na própria natureza da arte. No
início do capítulo vimos como as pessoas podem, por meio da atividade
artística, registrar as coisas que vêem, transmitir sentimentos e sonhos, e até
se comunicar com o “outro mundo”. São tantos os significados que a arte pode
assumir para um povo, que os cientistas ainda não chegaram a nenhuma conclusão
definitiva sobre o que teria levado os homens primitivos a fazerem suas
pinturas nas paredes de pedra e cavernas. Existem várias hipóteses para isto.
Veja o que o especialista em arte rupestre, Jean Clottes, explicou ao jornal Folha
de São Paulo numa entrevista publicada em dezembro de 1996:
(...) Segundo Jean Clottes, as primeiras
explicações sobre as imagens na pedra começaram a surgir depois de 1902 (...).
Em primeiro lugar, falou-se de arte pela arte. Os homens teriam sido levados a
pintar por um “sentimento inato*
do belo”, diz Clottes.
A
hipótese foi rapidamente abandonada. “Depois, o abade* Breuil sugeriu que os homens dessas cavernas tinham
práticas mágicas: os desenhos serviriam para assegurar* o sucesso da caça, a fecundidade*,
a destruição do inimigo. Essa explicação durou quase meio século. Mas ela
levantava problemas: por que certos animais não eram desenhados flechados? Por
que havia animais fantásticos?”
Uma outra hipótese é a de que os homens pré-históricos
desenhavam “para entrar em contato com os espíritos. É possível que os ossos
enfiados nas rachaduras da pedra servissem para estabelecer um contato com o
outro mundo. O mesmo ocorria com as imagens de mãos (...).
“Imagine um xamã* soprando sua pintura sagrada sobre a mão colocada sobre a
parede de pedra. Mão e rocha se tornam uma coisa só: a mão passou para o outro
mundo”.
Adaptação
de reportagem do caderno Mais!, Folha de São Paulo, domingo, 8 de
dezembro de 1996.
A vida dos primeiros seres-humanos
O que
sabemos hoje sobre a vida das pessoas que deixaram suas marcas no interior de
cavernas e grutas?
Pelo
número, frequência e local em que os fósseis humanos são encontrados, sabemos que
até mais ou menos 10 mil anos atrás, as pessoas viviam em bandos, ou seja,
agrupamentos dispersos e pouco numerosos, com cerca de 20 indivíduos. Viviam da
caça e da coleta, praticando também
a pesca quando havia rios, lagos ou mar por perto. Provavelmente a caça era
reservada aos homens, enquanto às mulheres cabia procurar mel, frutos, folhas,
raízes, mariscos e larvas - dependia do que estivesse disponível. Nesses
bandos, todo mundo era igual e tinha direito às mesmas coisas: se faltasse
comida, todo mundo passava fome; mas se fizessem uma boa caçada, todos se
fartavam.
Quanto às
moradias e vestimentas, os costumes variaram conforme a época e o ambiente.
Durante a última Era
Glacial, as pessoas vestiam roupas feitas com peles e couro. Para
costurá-las, usavam os tendões dos animais abatidos como linha e fabricavam
agulhas com lascas de ossos. Em pelo menos dois sítios arqueológicos da
República Tcheca, na Europa, existem indícios de que homens e mulheres da
cultura conhecida como gravetiana já produziam artigos têxteis como
redes, cobertores e cestos. É possível que outros povos também conhecessem o
uso de fibras vegetais, mas como esses materiais apodrecem e raramente deixam
vestígios, os cientistas não têm como identificá-los.
Para se
abrigarem, as pessoas construíam tendas armadas com galhos, folhas e até pele e
ossos de mamute*. Porém, se a
região oferecia proteções naturais como fendas em rochas e grutas, era aí mesmo
que se escondiam do vento, da chuva e dos predadores. Só que diferente do que
muita gente imagina, ninguém morava lá no fundo das grutas, onde era escuro e
úmido, mas na abertura delas.
A caça
era realizada com instrumentos feitos de pedra, madeira e ossos lascados. Como
vimos no capítulo 1, esses materiais já eram usados desde muito tempo pelos
antepassados do Homo sapiens, de modo que quando foram feitas as
primeiras pinturas em cavernas há 40 mil anos, as técnicas de lascamento encontravam-se amplamente
desenvolvidas e difundidas, permitindo que os seres humanos fabricassem grande
variedade de objetos, na medida exata de suas necessidades.
Quanto
aos utensílios de barro e cerâmica, como vasilhas e potes, ao que tudo indica
existiram apenas entre alguns povos isolados, como os já citados povos da
cultura gravetiana.
Na falta
de sinais de que os grupos humanos tenham permanecido muito tempo num mesmo
lugar, os pesquisadores acreditam que eles levavam uma vida nômade.
Quer dizer, estavam frequentemente se mudando de um lugar para outro, a fim de
acompanhar a migração* dos
animais e o crescimento das plantas.
Para
sobrevier, os seres humanos acumularam conhecimentos importantes sobre a
natureza: diferenciavam os vegetais adequados para a alimentação dos que podiam
causar uma bela dor de barriga, conheciam os hábitos dos animais, eram capazes
de reconhecer e empregar diversas ervas medicinais e desenvolveram técnicas
criativas de sobrevivência em ambientes tremendamente hostis*.
Mesmo
assim, a expectativa de vida dos seres humanos era pequena: uns 25 ou 28 anos
em média, o que não os impedia de se preocuparem uns com os outros. Prova disto
são os crânios e ossos com marcas de doenças prolongadas, amputações e feridas
cicatrizadas. Pela gravidade dos ferimentos e das deformações causadas pelas
doenças, deduzimos que a vítima só sobreviveu porque alguém permaneceu muito
tempo cuidando dela.
Sabemos
também que nossos antepassados acreditavam em algum tipo de vida após a morte,
pois sepultavam seus defuntos e colocavam ao lado deles alimentos e objetos,
provavelmente por imaginarem que estes lhes seriam úteis num outro mundo.
A
presença de seres fantásticos nas pinturas rupestres, estatuetas de mulheres
grávidas ou de homens com pênis descomunais entre outras representações,
sugerem que seus criadores acreditavam na existência de seres sobrenaturais,
ligados às forças da natureza. Os estudiosos levantam a hipóteses de que a
natureza era percebida como uma força viva e poderosa. Talvez as pessoas
acreditassem que os fenômenos naturais, bem como os animais e as plantas,
fossem animados por espíritos capazes de afetar as suas vidas.
Evidentemente
ocorreram variações no jeito dos seres humanos se organizarem e agirem,
dependendo da região e da época em que viveram. Por exemplo, variaram os
animais caçados e, portanto, as armas e estratégias de caça (você há de
concordar que é muito diferente caçar dentro da mata fechada ou em campo
aberto, abater um mamute ou um coelhinho, correr na neve ou na areia), variaram
as técnicas de fabricação de instrumentos, assim como as crenças e rituais.
Contudo, desde o surgimento do gênero Homo
até a descoberta da agricultura há cerca de 10 mil anos, quando começaram a
surgir outras formas de organização, os diferentes modos de vida dos seres
humanos apresentaram certas características em comum. Por isso foram
classificados como fazendo parte de um mesmo período da pré-história humana.
Como a maioria dos achados arqueológicos desse período é composta por artefatos
fabricados com pedra lascada, ele foi chamado de Paleolítico – palavra que quer dizer “pedra
antiga”.
Quem é
primitivo?
Tão parecidos e tão diferentes...
Observe a
pintura ao lado. Ela foi feita em 1956 pelo espanhol Joan Miró e se chama Estela de doble cara.
Nascido
em Barcelona, na Espanha, Juan Miró viveu de 1893 a 1983. Ele foi um artista
versátil*, pois além de pinturas, também fez belas esculturas, tapeçaria,
objetos de cerâmica, monumentos e até cenários para peças de teatro. Gostava de
usar tons fortes como o preto, o vermelho, o amarelo e o azul. Na sua obra,
colocava sentimento e imaginação. Por essa razão, as figuras pintadas por Miró
não têm formas claramente definidas. São figuras torcidas e estilizadas*, como
aquelas que às vezes aparecem nos sonhos. Para criá-las, ele buscava inspiração
nos desenhos infantis.
Apesar
das semelhanças entre a arte rupestre primitiva, a pintura dos aborígines
australianos e o trabalho de Miró, não podemos dizer que tudo é uma mesma e
única coisa. Existem diferenças quanto aos temas, os materiais usados e,
sobretudo, quanto à intenção dos artistas. As formas podem até ser parecidas,
mas expressam ideias, crenças e sentimentos diferentes. Por nada no mundo
poderíamos dizer que Miró foi um homem “primitivo” só porque algumas suas
pinturas lembram as dos artistas das cavernas. Do mesmo jeito, o fato de
existir uma tradição
– quer dizer, um conjunto de conhecimentos que vem sendo preservado e
transmitido de pai para filho desde épocas muito antigas (escolher a árvore
certa para retirar a casca, preparar a tinta, tratar a madeira, misturar as
cores, fazer os traços de acordo com certas convenções*, etc.) não faz dos
aborígines australianos um povo parado no tempo. Apesar
de os temas e técnicas usados em sua pintura serem praticamente os mesmos há
milhares de anos, pesquisas antropológicas* indicam que o seu significado mudou
consideravelmente.
Assim
também, existem vários grupos humanos que continuam vivendo da caça e da
coleta. Sem dúvida, alguns de seus costumes, armas e alimentos se parecem com o
dos nossos antepassados. Contudo, isto não significa que eles possam ser
considerados fósseis vivos. Se existem certas semelhanças, também existem
muitas diferenças. Afinal, há centenas de anos estes povos vêm se transformando
e aprimorando os conhecimentos sobre seu ambiente, graças a que conseguiram
manter suas tradições e identidade ao longo da História.
Porém, na
opinião de muitas pessoas, essas comunidades são “primitivas”. Ou seja, sua
maneira de viver e pensar é considerada “atrasada” em comparação a maneira como
vivem e pensam as pessoas dos grandes centros urbanos de nossos dias. Suas
casas, suas armas, seus deuses, sua música e sua arte, tudo é considerado
“inferior”.
A ideia
que está por trás disso, é a de que toda a humanidade só pode se desenvolver
num único sentido. Assim, todos os povos do mundo devem chegar, mais cedo ou
mais tarde, a viver como os habitantes das grandes cidades modernas. De acordo
com esse jeito de ver as coisas, as comunidades de caçadores e coletores
estariam ainda num estágio parecido com o de nossos antepassados do Paleolítico
e, portanto, ainda teriam muito chão para chegarem a ser como os homens
“civilizados”.
O que
muita gente não leva em consideração é que muitos desses povos, quando forçados
a mudar seu jeito de viver, não suportam o impacto da mudança e se tornam
vítimas de grandes desgraças.
Caçadores coletores do outro lado do mundo.
É precisamente esse o caso dos vários
povos aborígines da Austrália, com quem travamos contato nessa ficha. Até os
europeus chegarem na Oceania, eles eram nômades e viviam da caça e da coleta.
Fabricavam instrumentos de pedra e de madeira, dentre os quais o mais típico é
o bumerangue. Contudo, este era
empregado apenas no abate de aves e em competições entre as tribos, onde os
homens exibiam sua destreza e precisão com o instrumento. Para caçar,
utilizavam uma lança ligeiramente curva, longa e vigorosa. Não conheciam o arco
e flecha.
Ninguém
era dono da terra porque se entendiam como parte dela. Ainda hoje os aborígines
defendem a crença de que as terras, os rios, os homens, os animais e as plantas
são partes de um mesmo “organismo” e que não há como destruir um deles sem
causar sérios danos aos demais.
A maioria
dos povos nativos da Austrália dividiam-se clãs. Cada clã se
considerava descendente de um animal e por essa razão, adorava-o. Dedicavam
também muito respeito aos seus mortos, pois acreditavam que os espíritos dos
ancestrais podiam ajudar os vivos, dando-lhes conselhos e avisos.
Os clãs
eram dirigidos por um chefe, cujos poderes estavam limitados por um Conselho
formado pelos homens mais velhos e experientes da comunidade. Assim, suas
decisões só valiam se os anciãos* concordassem
com elas.
Os primeiros contatos dos aborígines com
os europeus ocorreram apenas em 1770, quando o capitão inglês James Cook
desembarcou na Austrália. Ao avistarem os nativos, os ingleses imediatamente se
acharam superiores, pois possuíam armas, navios e tantas outras coisas com as
quais eles nem sonhavam. Chegaram a ficar na dúvida se os nativos eram gente ou
macacos. Por essa razão, consideraram que aquelas terras não tinham dono e
declararam-nas parte das possessões inglesas.
Contudo,
os primeiros colonos europeus só começaram a chegar à região 18 anos mais
tarde. Como as prisões inglesas estavam abarrotadas, o governo decidiu
transformar suas terras no Pacífico em colônia penal. Mandou para lá um navio
com 750 homens e mulheres condenados, e suprimentos para 2 anos.
Entretanto
a vida ali não era nada fácil. As plantações dos colonos não vingavam e eles
não sabiam como obter alimentos naquelas terras. Pediram socorro às autoridades
inglesas, mas naquele tempo as viagens eram demoradíssimas e quando a ajuda
chegou, quase todos já haviam morrido de fome. Todo o sentimento de
superioridade dos ingleses não foi, afinal, suficiente para mantê-los vivos
naquela parte do mundo onde os “atrasados” aborígines viviam sem aperto...
Mas o
tempo passou e os ingleses conseguiram montar na sua colônia toda a
infraestrutura de que precisavam para prosperar. Aos poucos, pessoas de várias
partes do mundo mudaram-se para a Austrália e ocuparam-na. Enquanto isso, os
nativos morriam como moscas, vitimados pelas doenças introduzidas pelos
estrangeiros ou assassinados em massa por eles. Os sobreviventes foram confinados em reservas de onde não
podiam sair, como animais num zoológico. De um total de cerca de 400 mil
indivíduos, foram reduzidos a 30 mil em pouco mais de cem anos. Parte dos
vários povos nativos desapareceu.
Foi só em 1967 que o governo australiano
permitiu que eles tivessem direito à cidadania e fossem “libertos”
das reservas. Contudo, até hoje, a população aborígine é vítima de aberto
preconceito na Austrália e vive em condições miseráveis. Os mais velhos ainda
se esforçam para manter suas tradições, mas os jovens têm se distanciado cada
vez mais delas. Mesmo sua arte está ameaçada de virar souvenir para turistas.
Caçadores coletores do deserto
Os
bosquímanos são outro exemplo de povos que se tornou vítima do preconceito.
Instalados no sul da África há mais de mil anos, foram por quase todo esse
tempo os únicos povos a conseguirem sobreviver na aridez do Kalahari.
Numa
região onde a água é rara, aprenderam a armazená-la dentro de ovos de avestruz
que, depois de lacrados, eram enterrados até a época da seca. Além disso,
desenvolveram grande habilidade para localizar melões e tubérculos, outra fonte
preciosa de água no deserto.
Os
bosquímanos são até hoje caçadores habilidosos. Conseguem saber, pelas pegadas
dos animais, sua espécie, sexo, idade e tamanho. Para abatê-los, usam flechas
longas e leves, envenenadas com substâncias produzidas a partir do veneno de
cobras, escorpiões, aranhas e, principalmente, larvas de duas espécies nativas
de besouro.
A caça é uma atividade exclusivamente
masculina e a dignidade de um homem depende mais de sua pontaria do que de sua
força ou coragem.
Contudo,
são as mulheres que respondem pela maior parte dos alimentos consumidos pelo
grupo: com os filhos presos às costas, elas passam parte do dia coletando
frutos, ervas, raízes e mel.
Os
bosquímanos também se dividem em clãs, cuja chefia cabe inteiramente ao
patriarca, que é o homem mais velho e respeitado do grupo. Quando precisa tomar
uma decisão, ele escuta os outros homens do grupo, mas a palavra final é sua.
Além do chefe, o xamã também ocupa uma posição importante entre os bosquímanos.
Ele é uma espécie de curandeiro, que entra em transe para “ver” as doenças nas
pessoas e extirpa-las*. Até cem anos atrás, os xamãs pintavam nas paredes das
rochas as visões que tinham durante os transes, mas hoje esta prática está
abandonada.
Os
bosquímanos têm muito medo da morte, porque acham que ela sempre é obra de
espíritos maus. Assim, quando alguém morre, seu corpo é colocado num lugar
elevado, como uma pedra, para que o espírito não seja maculado* pelo contato
com a terra e possa partir logo para o outro mundo. Depois, a tribo levanta
acampamento e parte para longe, só retornando bastante tempo depois.
Como
outros povos caçadores-coletores, os bosquímanos são animistas, quer dizer, acreditam que todas
as coisas e seres da natureza – o sol, as pedras, os riachos, as plantas e
animais - são guiados por espíritos e que estes podem ajudar ou atrapalhar a
vida das pessoas.
Apesar de
ainda existirem grupos que vivem da caça e da coleta no Kalahari, desde que
começaram a ser construídos poços d’água pela região, na segunda metade do
século passado, os bosquímanos viram suas terras serem invadidas por colonos
brancos e por pastores africanos. Hoje, a grande maioria leva uma vida
miserável, dentro de reservas mantidas pelo governo ou prestando algum tipo de
serviço temporário aos fazendeiros da região.
Os
aborígines australianos e os bosquímanos, assim como muitos outros povos
espalhados pelo mundo, vivem de uma maneira muito diferente da nossa. Porém não
se trata de viver melhor ou pior. Certamente nós não nos sentiríamos confortáveis
no ambiente deles, pois fomos ensinados a sobreviver em outro meio e
circunstância. Se fôssemos obrigados a abandonar nossa vida para viver no
deserto, provavelmente entraríamos em pânico! Do mesmo modo, os povos que
muitas vezes consideramos “primitivos” desenvolveram uma cultura original e
muito rica, adequada às suas próprias necessidades.
ATIVIDADES
1. O que é a arte
rupestre? Por que o estudo deste tipo de manifestação artística é importante
para as pessoas que pesquisam o passado da humanidade?
2. No início do século
passado, o Abade Breuil formulou a teoria de que a representação de animais no
interior das cavernas era uma espécie de magia propiciatória: os homens
desenhavam os animais com o objetivo de enfeitiçá-los e assim, captura-los com
mais facilidade. Essa teoria foi aceita por muito tempo e ainda hoje há quem a
defenda. Contudo, escavações arqueológicas indicam que ela não está correta.
Cite uma prova apresentada pelos especialistas para descartar a teoria do
Abade.
3. Os cientistas
consideram que o Período Paleolítico se encerrou há 10 mil anos, quando os
homens começaram a criar animais e a cultivar alimentos. Isso significa que
todas as pessoas do mundo deixaram de viver da caça e da coleta? Explique sua
resposta.
4. No volume O Homem
Pré-Histórico da Enciclopédia Biblioteca
da Natureza, publicado em 1969, o último capítulo trata dos bosquímanos e
inicia-se sob o título “Espelho do passado”. Logo no primeiro parágrafo, está
escrito o seguinte:
(...) o que esses
cientistas estão fazendo é viver a arqueologia, considerando uma aldeia de
bosquímanos como se fosse um sítio de fósseis acabado de escavar, e esperam que
seus dados tragam novas perspectivas e maiores detalhes para a história que
está sendo escrita pelos arqueólogos que desvendam os segredos do homem
primitivo.
(Howell, F. Clark e
redatores de Life – Biblioteca da Natureza Life: o homem pré-histórico. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969, p. 178).
Pelo que você estudou
neste capítulo, qual é a crítica que poderíamos fazer a esta publicação?
5. Já faz vários anos
que dezenas de famílias de pequenos lavradores da fronteira entre o Piauí e o
Ceará vivem dentro de cavernas, grutas e fendas nas rochas da região. Vivem de
suas roças na encosta da serra ou do trabalho nas fazendas da região. Leia
abaixo uma entrevista feita com o agricultor José Pereira, 71, um dos moradores
dessas cavernas, conhecidas na região como “locas”:
Agência Folha:- Como é viver na caverna?
José Pereira: - Aqui para nós é bom, é tão descansadinho,
ninguém briga. A gente se acostuma.
Agência Folha:- O sr. não teme que a pedra caia?
Pereira: - Não, acho essa casa mais segura do que a que minha
família tem em Juazeiro do Norte (CE). Aquela foi nós que fizemos, e essa nós
já achamos pronta, feita por um ser superior.
Agência Folha -: Como o sr. se protege das cobras e insetos?
Pereira: - A gente se enrola com eles toda hora. As cobras vivem
nas pedras e brincam com nós aqui dentro. Tem umas bichinhas: caninana, cascavel
e outras cobrinhas desse tamanho (mostra uma vara seca de meio metro).
Agência Folha -: Vocês matam as cobras?
Pereira:- As que nós vemos, nós matamos; as que não enxergamos
estão vivendo aqui dentro com a gente. Não mexem com nós e nós também não vamos
atrás delas. Eu e meus filhos nunca fomos picados, mas dois vizinhos foram e
viajaram (morreram).
Agência Folha: - Seus filhos, quando eram pequenos, gostavam
de morar aqui?
Pereira: - Achavam bom, tinha muita diversão aqui. Caçar de
espingarda, tirar o mel. Achavam bom trabalhar na roça, principalmente quando
chegava a fartura.
Agência Folha: - O sr. Nunca pensou em construir uma casa?
Pereira: - Mas e as condições? Não dá e a gente se conforma, já
achou essa casa pronta. Vontade nunca faltou de fazer outra. Casa de palha não,
que aqui isso é difícil de conseguir. Tem telha no Ceará, só que é muito cara.
Agência Folha: - Por que o sr. Precisou sair do Ceará?
Pereira: - Por causa da terra. Não tinha terra para mim lá. E a
gente sofria muita sujeição trabalhando nas terras dos outros. Chegava a época
da colheita, e o dono da fazenda soltava os bois dele para comer a nossa roça. (...)
Agência Folha: - O que o governo poderia fazer para ajudar
lavradores como o senhor?
Pereira: - Se aparecesse água aqui, já era um descanso na nossa
vida. A gente vive só com esses buraquinhos (cavidades que enchem de água na
época das chuvas) que Deus deixou nas pedras. Deus é um bom pai.
(reportagem de Cris
Gutkoski para Agência Folha, Pimenteiras (PI), 21 de janeiro de 1996).
a. Você acha justo que
hoje, no nosso país, pessoas precisem viver em cavernas? Justifique sua
resposta.
b. Além da sugestão
dada pelo próprio José Pereira, o que mais o governo poderia fazer para
melhorar as condições de vida dos habitantes das locas?
c. O fato de viverem em
cavernas torna essas pessoas “primitivas”? Justifique sua resposta.
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