quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Primeiro Ano - FH2: Entre a imaginação e a realidade


FH2: Entre a imaginação e a realidade
A arte dos sonhos
Certa vez, quando tinha seis anos, vi num livro sobre a Floresta Virgem, “Histórias Vividas”, uma imponente gravura. Representava ela uma jibóia que engolia uma fera (....) Dizia o livro: “As jiboias engolem, sem mastigar, a presa inteira. Em seguida, não podem mover-se e dormem os seis meses da digestão”.
Refleti muito então sobre as aventuras da selva, e fiz, com lápis de cor, o meu primeiro desenho. Meu desenho número 1 era assim:
Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se meu desenho lhes fazia medo.
Responderam-me: “Por que é que um chapéu faria medo?”.
Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jiboia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jiboia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações. Meu desenho número 2 era assim:

As pessoas grandes aconselharam-me deixar de lado os desenhos de jibóias abertas ou fechadas, e dedicar-me de preferência à geografia, à história, ao cálculo, à gramática. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma esplêndida carreira de pintor. Eu fora desencorajado pelo insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando.
(Saint-Exupéry, Antoine de – O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1979, p. 9 - 10).

Desenhos podem ser como fotografias: cópias das imagens captadas pelo olhar. Mas também podem expressar sentimentos, fantasias e valores. Quando o narrador da história acima fez seu “desenho número 1”, ele tinha na cabeça uma porção de ideias sobre as florestas tropicais e seus habitantes. Estava excitado com a descoberta de que ali existia um réptil enorme, que engolia sua presa inteira e numa abocanhada só. Fantasiava sobre como o diâmetro da jiboia se agigantaria se ela escolhesse um elefante para o almoço. Sua imaginação corria solta e seu desenho era expressão disso.
Os desenhos podem ter ainda um significado mágico. Entre as populações nativas da Austrália, a arte é uma espécie de “porta” para sobrenatural. Assim, quando desenha sobre cascas de árvores ou no chão, com tintas extraídas de frutos, minerais e sementes, o artista acredita estar fazendo contato com os espíritos da natureza e dos ancestrais. É como se ele entrasse em transe e sonhasse acordado com histórias enviadas pelos espíritos, contendo ensinamentos e conselhos sobre como devemos nos comportar para vivermos em harmonia com as outras pessoas e a natureza. É por isso que cada ponto, linha ou figura da arte nativa australiana tem um significado especial. Articulados, eles formam um código secreto que só os iniciados nas artes mágicas conseguem decifrar.
A arte praticada pelos aborígines australianos é considerada uma das mais antigas do mundo. Arqueólogos encontraram figuras com cerca de 40 mil anos, gravadas em paredes rochosas da Austrália, usando temas e técnicas bem parecidos com os empregados no presente pelas populações locais.

Testemunho subterrâneo
Pinturas como estas foram encontradas não só na Austrália, mas em quase todo o mundo. É provável que seus autores também pintassem sobre a areia, cascas de árvores e até sobre o próprio corpo, mas esses “suportes” não duram tanto quanto as rochas e, literalmente, viraram pó com os efeitos do tempo.
Chamamos de arte rupestre o conjunto de pinturas, inscrições e desenhos feitos nas rochas e no interior de cavernas. As mais antigas datam de algo perto de 40 mil anos, mas algumas inscrições simples, como uma linha em ziguezague descoberta numa caverna da Índia, sugerem que desde 200 ou 300 mil anos atrás os seres humanos já haviam desenvolvido algum tipo de pensamento simbólico. Além dessas pinturas, existem estatuetas igualmente antigas, com formas de mulheres e animais cuidadosamente entalhadas em pedra, osso e marfim, e também alguns instrumentos musicais como flautas.


O primeiro conjunto importante de pinturas rupestres foi encontrado em 1879, numa gruta em Altamira, na Espanha. A princípio, ninguém acreditou que elas fossem obra de nossos antepassados. Afinal, não era verdade que os seres humanos progrediam sempre? Sendo assim, como pessoas tão primitivas teriam a capacidade de realizar obras tão belas e com tão alto nível técnico? Ora, – pensou-se – aquelas figuras só poderiam ter sido feitas por algum espertalhão do presente. Contudo, as pesquisas acabaram provando que as coisas não funcionavam exatamente daquele modo. As pinturas de Altamira não só eram mesmo milenares, como havia outras ainda mais antigas, como as pinturas de Chauvet (França), que não lhes deviam nada em matéria beleza nem de qualidade!
Depois de Altamira, as pesquisas arqueológicas na Europa tomaram impulso. Cresceu o interesse pelo estudo de nossos antepassados que, afinal, já não poderiam ser vistos como brutamontes estúpidos. Dinheiro e esforços foram investidos na busca de novos sítios arqueológicos. Não por acaso, a maioria das pinturas rupestres mais antigas que conhecemos hoje estão no fundo de grutas e cavernas europeias.
Apesar de separadas por centenas de quilômetros, estas as pinturas apresentam inúmeras semelhanças. Por exemplo, geralmente retratam com naturalismo grandes herbívoros ou animais ferozes e perigosos. Há também desenhos de seres fantásticos, meio gente e meio bicho, e figuras geométricas como círculos, bastões e triângulos. Porém, há pouquíssimas figuras de pessoas e quando estas aparecem, são apenas esboçadas, sem nenhum realismo. Não há nenhum registro de paisagens nem de vida cotidiana. Também são poucos os desenhos de animais pequenos como coelhos e raposas.
Já as pinturas rupestres mais recentes, com menos de 13 mil anos, são encontradas em várias partes do mundo e mostram maior diversidade de temas: além das imagens já citadas, aparecem também pessoas paradas ou em movimento (por exemplo, caçando, fazendo sexo e talvez dançando), animais e plantas de várias espécies, e sinais que lembram corpos celestes, como estrelas.
Para tentar “decifrar” essas pinturas, antropólogos e arqueólogos estudam cada imagem e sinal. Para isso, contam com a ajuda de dezenas de especialistas, inclusive pintores e escultores que conhecem bem as técnicas artísticas. Buscam identificar e comparar figuras recorrentes* em determinados lugares e situações. Também costumam compará-las com os trabalhos de populações atuais que preservam costumes tradicionais, como acontece com os aborígines australianos, e perceber semelhanças e diferenças entre eles. Além disso, frequentemente os desenhistas primitivos faziam suas pinturas sobrepostas* a outras mais antigas, e por isso, comparando as que estão em primeiro plano (mais recentes), com as de fundo (mais antigas), os pesquisadores conseguem acompanhar e estudar as transformações pelas quais passaram os registros rupestres ao longo do tempo.
Estudos como estes permitem encontrar algumas pistas sobre a vida e a maneira de pensar dos homens primitivos. Contudo, esse é um trabalho difícil e cheio de armadilhas. Por exemplo, descobriu-se recentemente que nem todos os animais representados nas cenas de caçada eram realmente comidos, pois não foram encontrados vestígios de seus ossos nos lugares onde existiram acampamentos humanos. Além disso, o fato de haver semelhanças entre a arte rupestre do passado e do presente não significa que as ideias, sentimentos e valores expressos nas duas sejam iguais. Portanto, as pinturas rupestres sozinhas não nos dão nenhuma certeza. É, pois, preciso “cruzar” as pistas oferecidas por elas com outras, como restos de fogueiras, pontas de lanças e fósseis, para que possamos montar um vago quadro de como viviam os seres humanos há milhares de anos.

As razões da arte
Mas ainda resta uma questão: Por que os homens primitivos pintavam?
A dificuldade para responder esta questão está na própria natureza da arte. No início do capítulo vimos como as pessoas podem, por meio da atividade artística, registrar as coisas que vêem, transmitir sentimentos e sonhos, e até se comunicar com o “outro mundo”. São tantos os significados que a arte pode assumir para um povo, que os cientistas ainda não chegaram a nenhuma conclusão definitiva sobre o que teria levado os homens primitivos a fazerem suas pinturas nas paredes de pedra e cavernas. Existem várias hipóteses para isto. Veja o que o especialista em arte rupestre, Jean Clottes, explicou ao jornal Folha de São Paulo numa entrevista publicada em dezembro de 1996:
(...) Segundo Jean Clottes, as primeiras explicações sobre as imagens na pedra começaram a surgir depois de 1902 (...). Em primeiro lugar, falou-se de arte pela arte. Os homens teriam sido levados a pintar por um “sentimento inato* do belo”, diz Clottes.
A hipótese foi rapidamente abandonada. “Depois, o abade* Breuil sugeriu que os homens dessas cavernas tinham práticas mágicas: os desenhos serviriam para assegurar* o sucesso da caça, a fecundidade*, a destruição do inimigo. Essa explicação durou quase meio século. Mas ela levantava problemas: por que certos animais não eram desenhados flechados? Por que havia animais fantásticos?”
Uma outra hipótese é a de que os homens pré-históricos desenhavam “para entrar em contato com os espíritos. É possível que os ossos enfiados nas rachaduras da pedra servissem para estabelecer um contato com o outro mundo. O mesmo ocorria com as imagens de mãos (...).
“Imagine um xamã* soprando sua pintura sagrada sobre a mão colocada sobre a parede de pedra. Mão e rocha se tornam uma coisa só: a mão passou para o outro mundo”.
Adaptação de reportagem do caderno Mais!, Folha de São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996.

A vida dos primeiros seres-humanos
O que sabemos hoje sobre a vida das pessoas que deixaram suas marcas no interior de cavernas e grutas?
Pelo número, frequência e local em que os fósseis humanos são encontrados, sabemos que até mais ou menos 10 mil anos atrás, as pessoas viviam em bandos, ou seja, agrupamentos dispersos e pouco numerosos, com cerca de 20 indivíduos. Viviam da caça e da coleta, praticando também a pesca quando havia rios, lagos ou mar por perto. Provavelmente a caça era reservada aos homens, enquanto às mulheres cabia procurar mel, frutos, folhas, raízes, mariscos e larvas - dependia do que estivesse disponível. Nesses bandos, todo mundo era igual e tinha direito às mesmas coisas: se faltasse comida, todo mundo passava fome; mas se fizessem uma boa caçada, todos se fartavam.
Quanto às moradias e vestimentas, os costumes variaram conforme a época e o ambiente. Durante a última Era Glacial, as pessoas vestiam roupas feitas com peles e couro. Para costurá-las, usavam os tendões dos animais abatidos como linha e fabricavam agulhas com lascas de ossos. Em pelo menos dois sítios arqueológicos da República Tcheca, na Europa, existem indícios de que homens e mulheres da cultura conhecida como gravetiana já produziam artigos têxteis como redes, cobertores e cestos. É possível que outros povos também conhecessem o uso de fibras vegetais, mas como esses materiais apodrecem e raramente deixam vestígios, os cientistas não têm como identificá-los.
Para se abrigarem, as pessoas construíam tendas armadas com galhos, folhas e até pele e ossos de mamute*. Porém, se a região oferecia proteções naturais como fendas em rochas e grutas, era aí mesmo que se escondiam do vento, da chuva e dos predadores. Só que diferente do que muita gente imagina, ninguém morava lá no fundo das grutas, onde era escuro e úmido, mas na abertura delas.
A caça era realizada com instrumentos feitos de pedra, madeira e ossos lascados. Como vimos no capítulo 1, esses materiais já eram usados desde muito tempo pelos antepassados do Homo sapiens, de modo que quando foram feitas as primeiras pinturas em cavernas há 40 mil anos, as técnicas de lascamento encontravam-se amplamente desenvolvidas e difundidas, permitindo que os seres humanos fabricassem grande variedade de objetos, na medida exata de suas necessidades.

 
Quanto aos utensílios de barro e cerâmica, como vasilhas e potes, ao que tudo indica existiram apenas entre alguns povos isolados, como os já citados povos da cultura gravetiana.
Na falta de sinais de que os grupos humanos tenham permanecido muito tempo num mesmo lugar, os pesquisadores acreditam que eles levavam uma vida nômade. Quer dizer, estavam frequentemente se mudando de um lugar para outro, a fim de acompanhar a migração* dos animais e o crescimento das plantas.
Para sobrevier, os seres humanos acumularam conhecimentos importantes sobre a natureza: diferenciavam os vegetais adequados para a alimentação dos que podiam causar uma bela dor de barriga, conheciam os hábitos dos animais, eram capazes de reconhecer e empregar diversas ervas medicinais e desenvolveram técnicas criativas de sobrevivência em ambientes tremendamente hostis*.
Mesmo assim, a expectativa de vida dos seres humanos era pequena: uns 25 ou 28 anos em média, o que não os impedia de se preocuparem uns com os outros. Prova disto são os crânios e ossos com marcas de doenças prolongadas, amputações e feridas cicatrizadas. Pela gravidade dos ferimentos e das deformações causadas pelas doenças, deduzimos que a vítima só sobreviveu porque alguém permaneceu muito tempo cuidando dela.
Sabemos também que nossos antepassados acreditavam em algum tipo de vida após a morte, pois sepultavam seus defuntos e colocavam ao lado deles alimentos e objetos, provavelmente por imaginarem que estes lhes seriam úteis num outro mundo.

A presença de seres fantásticos nas pinturas rupestres, estatuetas de mulheres grávidas ou de homens com pênis descomunais entre outras representações, sugerem que seus criadores acreditavam na existência de seres sobrenaturais, ligados às forças da natureza. Os estudiosos levantam a hipóteses de que a natureza era percebida como uma força viva e poderosa. Talvez as pessoas acreditassem que os fenômenos naturais, bem como os animais e as plantas, fossem animados por espíritos capazes de afetar as suas vidas.
Evidentemente ocorreram variações no jeito dos seres humanos se organizarem e agirem, dependendo da região e da época em que viveram. Por exemplo, variaram os animais caçados e, portanto, as armas e estratégias de caça (você há de concordar que é muito diferente caçar dentro da mata fechada ou em campo aberto, abater um mamute ou um coelhinho, correr na neve ou na areia), variaram as técnicas de fabricação de instrumentos, assim como as crenças e rituais. Contudo, desde o surgimento do gênero Homo até a descoberta da agricultura há cerca de 10 mil anos, quando começaram a surgir outras formas de organização, os diferentes modos de vida dos seres humanos apresentaram certas características em comum. Por isso foram classificados como fazendo parte de um mesmo período da pré-história humana. Como a maioria dos achados arqueológicos desse período é composta por artefatos fabricados com pedra lascada, ele foi chamado de Paleolítico – palavra que quer dizer “pedra antiga”.

Quem é primitivo?
Tão parecidos e tão diferentes...
Observe a pintura ao lado. Ela foi feita em 1956 pelo espanhol Joan Miró e se chama Estela de doble cara.
Nascido em Barcelona, na Espanha, Juan Miró viveu de 1893 a 1983. Ele foi um artista versátil*, pois além de pinturas, também fez belas esculturas, tapeçaria, objetos de cerâmica, monumentos e até cenários para peças de teatro. Gostava de usar tons fortes como o preto, o vermelho, o amarelo e o azul. Na sua obra, colocava sentimento e imaginação. Por essa razão, as figuras pintadas por Miró não têm formas claramente definidas. São figuras torcidas e estilizadas*, como aquelas que às vezes aparecem nos sonhos. Para criá-las, ele buscava inspiração nos desenhos infantis.
Apesar das semelhanças entre a arte rupestre primitiva, a pintura dos aborígines australianos e o trabalho de Miró, não podemos dizer que tudo é uma mesma e única coisa. Existem diferenças quanto aos temas, os materiais usados e, sobretudo, quanto à intenção dos artistas. As formas podem até ser parecidas, mas expressam ideias, crenças e sentimentos diferentes. Por nada no mundo poderíamos dizer que Miró foi um homem “primitivo” só porque algumas suas pinturas lembram as dos artistas das cavernas. Do mesmo jeito, o fato de existir uma tradição – quer dizer, um conjunto de conhecimentos que vem sendo preservado e transmitido de pai para filho desde épocas muito antigas (escolher a árvore certa para retirar a casca, preparar a tinta, tratar a madeira, misturar as cores, fazer os traços de acordo com certas convenções*, etc.) não faz dos aborígines australianos um povo parado no tempo. Apesar de os temas e técnicas usados em sua pintura serem praticamente os mesmos há milhares de anos, pesquisas antropológicas* indicam que o seu significado mudou consideravelmente.
Assim também, existem vários grupos humanos que continuam vivendo da caça e da coleta. Sem dúvida, alguns de seus costumes, armas e alimentos se parecem com o dos nossos antepassados. Contudo, isto não significa que eles possam ser considerados fósseis vivos. Se existem certas semelhanças, também existem muitas diferenças. Afinal, há centenas de anos estes povos vêm se transformando e aprimorando os conhecimentos sobre seu ambiente, graças a que conseguiram manter suas tradições e identidade ao longo da História.
Porém, na opinião de muitas pessoas, essas comunidades são “primitivas”. Ou seja, sua maneira de viver e pensar é considerada “atrasada” em comparação a maneira como vivem e pensam as pessoas dos grandes centros urbanos de nossos dias. Suas casas, suas armas, seus deuses, sua música e sua arte, tudo é considerado “inferior”.
A ideia que está por trás disso, é a de que toda a humanidade só pode se desenvolver num único sentido. Assim, todos os povos do mundo devem chegar, mais cedo ou mais tarde, a viver como os habitantes das grandes cidades modernas. De acordo com esse jeito de ver as coisas, as comunidades de caçadores e coletores estariam ainda num estágio parecido com o de nossos antepassados do Paleolítico e, portanto, ainda teriam muito chão para chegarem a ser como os homens “civilizados”.
O que muita gente não leva em consideração é que muitos desses povos, quando forçados a mudar seu jeito de viver, não suportam o impacto da mudança e se tornam vítimas de grandes desgraças.

Caçadores coletores do outro lado do mundo.
É precisamente esse o caso dos vários povos aborígines da Austrália, com quem travamos contato nessa ficha. Até os europeus chegarem na Oceania, eles eram nômades e viviam da caça e da coleta. Fabricavam instrumentos de pedra e de madeira, dentre os quais o mais típico é o bumerangue. Contudo, este era empregado apenas no abate de aves e em competições entre as tribos, onde os homens exibiam sua destreza e precisão com o instrumento. Para caçar, utilizavam uma lança ligeiramente curva, longa e vigorosa. Não conheciam o arco e flecha.
Ninguém era dono da terra porque se entendiam como parte dela. Ainda hoje os aborígines defendem a crença de que as terras, os rios, os homens, os animais e as plantas são partes de um mesmo “organismo” e que não há como destruir um deles sem causar sérios danos aos demais.
A maioria dos povos nativos da Austrália dividiam-se clãs. Cada clã se considerava descendente de um animal e por essa razão, adorava-o. Dedicavam também muito respeito aos seus mortos, pois acreditavam que os espíritos dos ancestrais podiam ajudar os vivos, dando-lhes conselhos e avisos.
Os clãs eram dirigidos por um chefe, cujos poderes estavam limitados por um Conselho formado pelos homens mais velhos e experientes da comunidade. Assim, suas decisões só valiam se os anciãos* concordassem com elas.
Os primeiros contatos dos aborígines com os europeus ocorreram apenas em 1770, quando o capitão inglês James Cook desembarcou na Austrália. Ao avistarem os nativos, os ingleses imediatamente se acharam superiores, pois possuíam armas, navios e tantas outras coisas com as quais eles nem sonhavam. Chegaram a ficar na dúvida se os nativos eram gente ou macacos. Por essa razão, consideraram que aquelas terras não tinham dono e declararam-nas parte das possessões inglesas.

Contudo, os primeiros colonos europeus só começaram a chegar à região 18 anos mais tarde. Como as prisões inglesas estavam abarrotadas, o governo decidiu transformar suas terras no Pacífico em colônia penal. Mandou para lá um navio com 750 homens e mulheres condenados, e suprimentos para 2 anos.
Entretanto a vida ali não era nada fácil. As plantações dos colonos não vingavam e eles não sabiam como obter alimentos naquelas terras. Pediram socorro às autoridades inglesas, mas naquele tempo as viagens eram demoradíssimas e quando a ajuda chegou, quase todos já haviam morrido de fome. Todo o sentimento de superioridade dos ingleses não foi, afinal, suficiente para mantê-los vivos naquela parte do mundo onde os “atrasados” aborígines viviam sem aperto...
Mas o tempo passou e os ingleses conseguiram montar na sua colônia toda a infraestrutura de que precisavam para prosperar. Aos poucos, pessoas de várias partes do mundo mudaram-se para a Austrália e ocuparam-na. Enquanto isso, os nativos morriam como moscas, vitimados pelas doenças introduzidas pelos estrangeiros ou assassinados em massa por eles. Os sobreviventes foram confinados em reservas de onde não podiam sair, como animais num zoológico. De um total de cerca de 400 mil indivíduos, foram reduzidos a 30 mil em pouco mais de cem anos. Parte dos vários povos nativos desapareceu. 
Foi só em 1967 que o governo australiano permitiu que eles tivessem direito à cidadania e fossem “libertos” das reservas. Contudo, até hoje, a população aborígine é vítima de aberto preconceito na Austrália e vive em condições miseráveis. Os mais velhos ainda se esforçam para manter suas tradições, mas os jovens têm se distanciado cada vez mais delas. Mesmo sua arte está ameaçada de virar souvenir para turistas.


Caçadores coletores do deserto
Os bosquímanos são outro exemplo de povos que se tornou vítima do preconceito. Instalados no sul da África há mais de mil anos, foram por quase todo esse tempo os únicos povos a conseguirem sobreviver na aridez do Kalahari.
Numa região onde a água é rara, aprenderam a armazená-la dentro de ovos de avestruz que, depois de lacrados, eram enterrados até a época da seca. Além disso, desenvolveram grande habilidade para localizar melões e tubérculos, outra fonte preciosa de água no deserto.
Os bosquímanos são até hoje caçadores habilidosos. Conseguem saber, pelas pegadas dos animais, sua espécie, sexo, idade e tamanho. Para abatê-los, usam flechas longas e leves, envenenadas com substâncias produzidas a partir do veneno de cobras, escorpiões, aranhas e, principalmente, larvas de duas espécies nativas de besouro.
A caça é uma atividade exclusivamente masculina e a dignidade de um homem depende mais de sua pontaria do que de sua força ou coragem.
Contudo, são as mulheres que respondem pela maior parte dos alimentos consumidos pelo grupo: com os filhos presos às costas, elas passam parte do dia coletando frutos, ervas, raízes e mel.
Os bosquímanos também se dividem em clãs, cuja chefia cabe inteiramente ao patriarca, que é o homem mais velho e respeitado do grupo. Quando precisa tomar uma decisão, ele escuta os outros homens do grupo, mas a palavra final é sua. Além do chefe, o xamã também ocupa uma posição importante entre os bosquímanos. Ele é uma espécie de curandeiro, que entra em transe para “ver” as doenças nas pessoas e extirpa-las*. Até cem anos atrás, os xamãs pintavam nas paredes das rochas as visões que tinham durante os transes, mas hoje esta prática está abandonada.
Os bosquímanos têm muito medo da morte, porque acham que ela sempre é obra de espíritos maus. Assim, quando alguém morre, seu corpo é colocado num lugar elevado, como uma pedra, para que o espírito não seja maculado* pelo contato com a terra e possa partir logo para o outro mundo. Depois, a tribo levanta acampamento e parte para longe, só retornando bastante tempo depois.
Como outros povos caçadores-coletores, os bosquímanos são animistas, quer dizer, acreditam que todas as coisas e seres da natureza – o sol, as pedras, os riachos, as plantas e animais - são guiados por espíritos e que estes podem ajudar ou atrapalhar a vida das pessoas.
Apesar de ainda existirem grupos que vivem da caça e da coleta no Kalahari, desde que começaram a ser construídos poços d’água pela região, na segunda metade do século passado, os bosquímanos viram suas terras serem invadidas por colonos brancos e por pastores africanos. Hoje, a grande maioria leva uma vida miserável, dentro de reservas mantidas pelo governo ou prestando algum tipo de serviço temporário aos fazendeiros da região.
Os aborígines australianos e os bosquímanos, assim como muitos outros povos espalhados pelo mundo, vivem de uma maneira muito diferente da nossa. Porém não se trata de viver melhor ou pior. Certamente nós não nos sentiríamos confortáveis no ambiente deles, pois fomos ensinados a sobreviver em outro meio e circunstância. Se fôssemos obrigados a abandonar nossa vida para viver no deserto, provavelmente entraríamos em pânico! Do mesmo modo, os povos que muitas vezes consideramos “primitivos” desenvolveram uma cultura original e muito rica, adequada às suas próprias necessidades.

ATIVIDADES
1. O que é a arte rupestre? Por que o estudo deste tipo de manifestação artística é importante para as pessoas que pesquisam o passado da humanidade?
2. No início do século passado, o Abade Breuil formulou a teoria de que a representação de animais no interior das cavernas era uma espécie de magia propiciatória: os homens desenhavam os animais com o objetivo de enfeitiçá-los e assim, captura-los com mais facilidade. Essa teoria foi aceita por muito tempo e ainda hoje há quem a defenda. Contudo, escavações arqueológicas indicam que ela não está correta. Cite uma prova apresentada pelos especialistas para descartar a teoria do Abade.
3. Os cientistas consideram que o Período Paleolítico se encerrou há 10 mil anos, quando os homens começaram a criar animais e a cultivar alimentos. Isso significa que todas as pessoas do mundo deixaram de viver da caça e da coleta? Explique sua resposta.

4. No volume O Homem Pré-Histórico da Enciclopédia Biblioteca da Natureza, publicado em 1969, o último capítulo trata dos bosquímanos e inicia-se sob o título “Espelho do passado”. Logo no primeiro parágrafo, está escrito o seguinte:
(...) o que esses cientistas estão fazendo é viver a arqueologia, considerando uma aldeia de bosquímanos como se fosse um sítio de fósseis acabado de escavar, e esperam que seus dados tragam novas perspectivas e maiores detalhes para a história que está sendo escrita pelos arqueólogos que desvendam os segredos do homem primitivo.
(Howell, F. Clark e redatores de Life – Biblioteca da Natureza Life: o homem pré-histórico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969, p. 178).

Pelo que você estudou neste capítulo, qual é a crítica que poderíamos fazer a esta publicação?

5. Já faz vários anos que dezenas de famílias de pequenos lavradores da fronteira entre o Piauí e o Ceará vivem dentro de cavernas, grutas e fendas nas rochas da região. Vivem de suas roças na encosta da serra ou do trabalho nas fazendas da região. Leia abaixo uma entrevista feita com o agricultor José Pereira, 71, um dos moradores dessas cavernas, conhecidas na região como “locas”:

Agência Folha:- Como é viver na caverna?
José Pereira: - Aqui para nós é bom, é tão descansadinho, ninguém briga. A gente se acostuma.
Agência Folha:- O sr. não teme que a pedra caia?
Pereira: - Não, acho essa casa mais segura do que a que minha família tem em Juazeiro do Norte (CE). Aquela foi nós que fizemos, e essa nós já achamos pronta, feita por um ser superior.
Agência Folha -: Como o sr. se protege das cobras e insetos?
Pereira: - A gente se enrola com eles toda hora. As cobras vivem nas pedras e brincam com nós aqui dentro. Tem umas bichinhas: caninana, cascavel e outras cobrinhas desse tamanho (mostra uma vara seca de meio metro).
Agência Folha -: Vocês matam as cobras?
Pereira:- As que nós vemos, nós matamos; as que não enxergamos estão vivendo aqui dentro com a gente. Não mexem com nós e nós também não vamos atrás delas. Eu e meus filhos nunca fomos picados, mas dois vizinhos foram e viajaram (morreram).
Agência Folha: - Seus filhos, quando eram pequenos, gostavam de morar aqui?
Pereira: - Achavam bom, tinha muita diversão aqui. Caçar de espingarda, tirar o mel. Achavam bom trabalhar na roça, principalmente quando chegava a fartura.
Agência Folha: - O sr. Nunca pensou em construir uma casa?
Pereira: - Mas e as condições? Não dá e a gente se conforma, já achou essa casa pronta. Vontade nunca faltou de fazer outra. Casa de palha não, que aqui isso é difícil de conseguir. Tem telha no Ceará, só que é muito cara.
Agência Folha: - Por que o sr. Precisou sair do Ceará?
Pereira: - Por causa da terra. Não tinha terra para mim lá. E a gente sofria muita sujeição trabalhando nas terras dos outros. Chegava a época da colheita, e o dono da fazenda soltava os bois dele para comer a nossa roça. (...)
Agência Folha: - O que o governo poderia fazer para ajudar lavradores como o senhor?
Pereira: - Se aparecesse água aqui, já era um descanso na nossa vida. A gente vive só com esses buraquinhos (cavidades que enchem de água na época das chuvas) que Deus deixou nas pedras. Deus é um bom pai.
(reportagem de Cris Gutkoski para Agência Folha, Pimenteiras (PI), 21 de janeiro de 1996).

a. Você acha justo que hoje, no nosso país, pessoas precisem viver em cavernas? Justifique sua resposta.
b. Além da sugestão dada pelo próprio José Pereira, o que mais o governo poderia fazer para melhorar as condições de vida dos habitantes das locas?
c. O fato de viverem em cavernas torna essas pessoas “primitivas”? Justifique sua resposta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário